Música Pretérita®
Um pouco sobre a música dos séculos XVI, XVII e XVIII.

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Um pouco de detergente ou sabão líquido em um recipiente, um tubinho comprido e esguio, um sopro gentil e grandes doses de engenho: eis o complexo esplendor da simplicidade 🫧
A cena gentil e serena de um jovem soprando suas bolhas de sabão, tal como vemos acima, está alicerçada em quantidades generosas de labor e esmero.
Com técnica semelhante à célebre obra intitulada “Salvator Mundi”, atribuída a Leonardo da Vinci (1452-1519), em que Jesus Cristo segura uma esfera de cristal em uma de suas mãos, o pintor anônimo que representa o garoto não economizou em detalhes, nem mesmo no reflexo da janela do ambiente da cena na finíssima superfície de suas invejáveis bolhas de sabão. O pintor ostenta, de fato, sua técnica impecável que, a olhos despretensiosos, nos convida a apenas contemplar a beleza de sua representação.
Leon Battista Alberti (1404-1472), em seu tratado “De Pictura”, já havia advertido que “coisa alguma é tão difícil que o empenho e a persistência não superem”.
Espero que ele esteja certo, pois faz tempo que estou nessa estrada repleta de bifurcações.
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Pintura: Anônimo (c.1740-1760), Garoto soprando bolhas de sabão
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Concerto – com “c”.
Segundo o Vocabolario degli Accademici della Crusca (1612), o primeiro dicionário de língua italiana, a palavra “concerto” se refere aos termos latinos concentus, pactum, conventum e conventio. Ou seja, está próximo às ideias de pacto, acordo e convenção.
No transcorrer dos séculos, no mundo ocidental, uma parcela significativa da prática musical – a de concerto , justamente – descolou a apropriação do discurso sonoro por parte do público. Explico: com a elevação do palco, o concerto absorveu costumes ritualísticos; com a plateia em formato de ferradura, pôde-se intensificar os hábitos sociais promovidos pela aparência; com o código de vestimentas, garantiu-se o desconforto do músico e a elitização do público; com o culto ao silêncio, finalmente, pactuou-se o constrangimento.
Nasceu o artista e cresceu a idolatria.
Por essas e outras razões, um concerto pode ser uma experiência extremamente desconfortável, tanto para o público quanto para o músico. Creio que, nos séculos XVII e XVIII, as ideias de pacto e de convenção não se referiam a tamanhos esforços e dificuldades para que fosse possível ouvir música. Pelo contrário: como vemos na tela de Nicolas Tournier, a ideia de concerto não estava nem mesmo exclusivamente atrelada a uma apresentação. Apenas fazer música – de forma saudável e sustentável.
Não deve ser proibido gostar do que faz. Ou será que é?
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Pintura: Nicolas Tournier (c.1590 – c.1639), Le concert
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‘Num piscar de olhos’, diz o quadro.
Ainda na temática do memento mori (‘lembre-se da morte’, em português), gostaria de refletir um pouco mais sobre a efemeridade da existência, sem tentar evitar, desta vez, os vernizes dos séculos XIX e XX que ofuscam, invariavelmente, nossos olhares.
Vemos, pelas pinceladas de Juan de Valdés Leal, um esqueleto – a morte – carregando um caixão e uma foice. Seu pé esquerdo está apoiado em um globo terrestre. O direito, em uma infinidade de objetos: papéis, livros, tecidos, armaduras, cajados, jóias e coroa. ‘Coisas’ não apenas da vida material, mas que se relacionam à riqueza e ao poder.
Num piscar de olhos (In ictu oculi), aponta a morte enquanto nos encara, a vida se esvai e as coisas permanecem… amontoadas, largadas e acumuladas. Mas… num piscar de olhos? Fico pensando.
Eventos que acontecem na infância marcam, traumatizam e, em alguma medida, degradam a vida adulta. O recalcado procura sempre retornar, e o contrato social aprendido e apreendido na vida jovem faz alguns de nossos dias demasiadamente longos. A penitência é cotidiana.
Não é em vão quando digo aos meus amigos que a vida é uma Doença Sexualmente Transmissível (DST). A enfermidade gera dor e sofrimento, assim como os dias vividos. Viver é um estado permanentemente transitório entre o adoecer e o convalescer.
Sei que não estou sendo nada estoico nessas linhas que escrevo, mas, ok. Permito-me de vez em quando.
Voltando ao quadro: seu pé sobre o globo talvez represente a inexorabilidade da transitoriedade da vida, uma vez que pertence a todos, sem exceção. Isso, sim, é inegável. O curioso é que a morte é a única certeza de nossas vidas que, por mais que falemos sobre ela, só é elaborada no post mortem. Melhor, a cada post mortem de nossos entes – nem sempre queridos.
Os objetos largados pelo cadáver precisam ser recolhidos por alguém. Isto é, deixam de pertencer a quem foi, mas se tornam responsabilidade de quem ficou. Em alguma medida, complementam ou suplementam a vida dessa pessoa. Talvez seja bom, pois trazem memórias fortes, o que possibilita reviver os eventos traumáticos. Apesar da dor, faz bem para a saúde – inclusive para a pele.
O entulho já não é mais poder, mas fraqueza. Poder se tornar a representação de quem lida com ele, mas ainda é entulho.
Num piscar de olhos. Como nos disse Manuel Bandeira, ‘a vida que podia ter sido e que não foi’. Não foi, mesmo. Nem será. Podia ter sido. Podia, apenas.
Acho que a vida é a única doença da qual ninguém quer ser curado.
Ide em paz 🌼
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Pintura: Juan de Valdés Leal (1622-1690), In Ictu Oculi
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Dentro desse emaranhado de tecidos e vasos sanguíneos, localiza-se a glândula pineal. Bem no centro. Para René Descartes (1596-1650), tratava-se da sede de nossa alma.
Que magnífico é o cérebro humano. Por meio de suas funções, produz o pensamento que, segundo o filósofo, se divide em quatro faculdades: vontade, entendimento, imaginação e percepção sensorial. Eis nossa relação com a realidade (que, já em Freud, determina nossa estrutura psíquica – e nos adoece).
Não é por acaso a permanência da orelha, do nariz e da boca na imagem acima. O anatomista não nos deixa apreciar o principal órgão do corpo humano sem sua relação intrínseca com o ser em si. A gravura fica mais trabalhosa de se fazer, é verdade, mas também mais difícil de se apreciar.
A dificuldade reside, creio, na realidade presente na gravura. Assim somos: alma e carne.
Ecce homo.
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Gravura: Andreas Vesalius (1514-1564), De Humani Corporis Fabrica
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Ele não está com roupa vermelha.
Segundo a Bíblia, São Bartolomeu, ou Natanael, foi um dos 12 apóstolos de Cristo, que outorgou-lhe o título de “verdadeiro israelita”.
Bartolomeu, que não recebeu uma narração especificamente sua, foi vítima de um martírio durante suas peregrinações: foi esfolado vivo. E sobreviveu.
Na primeira imagem, vemos, portanto, o personagem sem a pele de seu corpo. Com a carne exposta, gotas de sangue pingam no chão. Sua túnica é sua pele extirpada – repare dos detalhes.
Andreas Vesalius, em 1543, utilizou-se desse mito para compor a representação da musculatura humana em seu tratado de anatomia. Utiliza-se do causo como veículo para sua investigação científica. Aqui, o suposto Bartolomeu segura e expõe a própria pele, assim como Michelangelo o representara no teto da Capela Sistina.
Como simbolização do martírio, o apóstolo segura, em ambas, o punhal que arrancou sua própria pele.
Pois é, a arte é capaz de embelezar com o feio, ensinar com o choque e deleitar com o horror.
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Pintura: Matteo di Giovanni (1435-1495), São Bartolomeu, o Apóstolo
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Homero foi um dos maiores autores da história do ocidente (perceba: autor, e não escritor). Um dos pontos mais curiosos sobre o poeta, no entanto, é que ele pode não ter existido. Transita entre lenda e realidade.
Dependendo do contexto das reflexões, como aqui, não importa se ele existiu ou deixou de existir.
Homero representa uma parte significativa da tradição oral ocidental. Sua poesia épica (Ilíada e Odisseia) foram transmitidas – portanto, moldadas – oralmente por muitos séculos.
Trata-se, portanto, de pura música. Não é em vão que, nesta pintura, ele esteja representado como um músico – cego – que transmite a tradição por meio dos sons. Um jovem a escuta e a registra.
A notação é incompleta, eu sei. Não registra a totalidade das nuances sonoras.
Talvez isto seja, porém, seu maior atributo.
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Pintura: Anônimo. Homero tocando violino na companhia de um discípulo
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Quão bobo é o bobo-da-corte?
Esse personagem, tão proeminente no imaginário ocidental, consolidou-se no final da Idade Média e, sobretudo, no Renascimento – isto é, na formação da cultura de corte.
O bobo era, na verdade, mais uma das diversas facetas da artesania, tão cara àquele período e tão recorrente nesta página.
Dentre suas habilidades, destacavam-se música, dança, acrobacia, malabarismo, truques de mágica e, claro, a piada.
Ah, a piada! Ou o chiste, como preferia Freud: um livre caminho para a manifestação de nossas pulsões mais secretas.
Mas… será mesmo que ficou no passado? Parece-me que há muitos bobos ao nosso redor e, sem dúvida, dentro de cada um de nós. Pronto para dar o bote e dizer o que o desejo nos obriga expor. Para que isso se suceda de maneira segura e aceitável socialmente, são necessários trabalho e refinamento constantes.
No fim, o bobo é o único autorizado a dizer que o rei está nu.
Parece bobo para você? 🙃
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Pintura: Anônimo, (c. 1500), Bobo-da-corte rindo